"O interesse cresceu [no Brasil] nos últimos anos, mas temos muito por fazer, as pesquisas são ainda esporádicas", notou Mônica Simas, académica brasileira que se encontra em Macau para participar na conferência "Lembrando Henrique de Senna Fernandes: Jornadas em torno da identidade macaense".

A conferência, por ocasião do centenário do nascimento do autor, arrancou hoje na Universidade da Cidade de Macau e termina na quinta-feira na Universidade de Macau.

"Acho que, em parte, se deve ao fato de os estudos portugueses se concentrarem nos domínios Atlânticos, e os interesses sobre a China se concentrarem na cultura chinesa continental", justificou a docente da Universidade Ca' Foscari de Veneza, para quem, "apesar disso, os lugares periféricos encontram sempre pesquisadores interessados": "Portanto, há já uma tradição nesses estudos, mas ela é estreita".

A contribuir para a dormência académica relativa ao estudo da literatura do escritor de Macau está ainda "a questão da circulação" dos livros - uma "grande dificuldade" nas palavras de Simas, que sugere a possibilidade de criar versões eletrónicas.

Outras "formas efetivas" de ampliar o público e a crítica seria, de acordo com a brasileira, a tradução dos livros para outros idiomas, além de professores e investigadores incentivarem a realização de trabalhos comparados, no âmbito das literaturas de língua portuguesa ou de outras línguas.

Nascido em Macau a 15 de outubro de 1923, no seio de uma família tradicional macaense - comunidade euro-asiática em que muitos dos membros são lusodescendentes - Senna Fernandes concluiu a licenciatura em Direito pela Universidade de Coimbra, entre 1946 e 1952. Regressado de Portugal, o macaense dividiu a profissão de advogado com a de professor e escritor, tendo deixado quatro livros publicados, com dois dos romances, "Amor e Dedinhos de Pé" (1993) e "Trança Feiticeira" (1996), a chegarem ao cinema.

Com uma "parte grande" dedicada à literatura de Henrique de Senna Fernandes na tese de doutoramento (2001), Simas lembrou à Lusa que, ao integrar o corpo docente na Universidade de São Paulo, em 2003, foi encontrar "um meio propício para a receção do estudo da literatura de Macau", com a académica Benilde Justo Caniato "a motivar os alunos a fazer teses".

"Ela é uma espécie de pioneira, que eu saiba, no Brasil, que teria motivado os primeiros estudos sobre a obra de Henrique de Senna Fernandes", acrescentou.

No caso de Portugal, onde os livros do escritor-advogado são igualmente de "difícil acesso", há também ainda muito caminho a percorrer para dar a conhecer a literatura macaense, salienta o professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Rogério Miguel Puga, sugerindo que estas sejam disponibilizadas 'online' e gratuitamente, para ajudar "estudantes portugueses a analisar a obra".

O professor associado do departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas, que investiga autores macaenses, garante estar "bem acompanhado" na academia portuguesa, com "inúmeras pessoas a ler e a estudar Henrique de Senna Fernandes".

"Em congressos, sim, a obra é abordada amiúde pelos académicos nacionais e internacionais que estudam Macau. Nas aulas, que eu saiba, de forma sistemática e permanente, a obra de Henrique de Senna Fernandes é pontualmente referida por docentes ao estudar temáticas de Macau", nota o académico, admitindo não conhecer outros investigadores mergulhados na literatura do macaense nos restantes países de língua portuguesa, além de Mónica Simas no Brasil.

"Macau poderia juntar investigadores desses países para o fazer", diz, admitindo que "há muito para fazer e por comparar". Ou seja, seria "interessante uma comparação entre autores macaenses, portugueses, goeses, brasileiros", e ainda com autores de outras línguas que narraram Macau.

Importa conhecer o autor, analisa ainda Puga, na medida em que este, enquanto voz macaense, descreve, "de forma realista, o território durante a administração portuguesa", as "comunidades portuguesa, chinesa e macaense, bem com a diáspora macaense e as relações de poder, étnicas e de género no território".

"A caracterização da Macau do século XX é um aspeto muito relevante da obra, as diferenças do Bazar chinês e da cidadela cristã, os lares macaenses, dos reinóis, bem como a crítica (por vezes) encoberta à comunidade cristã que se esconde atrás de fachadas e contrai infeções venéreas tratadas por personagens dos romances. Esse retrato crítico é muito interessante", disse.

Também para Mónica Simas há "um interesse óbvio" na bibliografia de Senna Fernandes, sendo "fundamental à compreensão mais vasta do Império português".

"No caso específico dos romances, interessa ver a tensão entre os valores locais e universais; acompanhar a representação de processos de integração ou de fricção e ostracismo social", referiu.

Temas que vão transpor fronteiras e chegam a Itália já a 24 de novembro, por meio de um congresso internacional sobre Senna Fernandes na Universidade Ca' Foscari de Veneza, e que Mônica Simas assume "ser talvez um primeiro momento em Itália, especificamente, sobre o estudo da obra de Henrique de Senna Fernandes".

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