2022 não foi um ano simpático para o homem que em 2004 lançava uma coisinha chamada Facebook. Foi o ano em que a sua empresa anunciou que a Meta Reality Labs perdeu 10 mil milhões de dólares; foi o ano em que culpou a Apple pela perda de outros 10 mil milhões em receitas de publicidade; foi o ano que ficou sem Sheryl Sandberg, o seu braço-direito de longa data; foi o ano que apresentou ao mundo avatares estilo Nintendo Wii; foi o ano em que saíram reportagens que sugeriam que nem os seus próprios funcionários frequentavam o metaverso. Tudo assunto que manchou forte e feio a reputação do "homem não-eleito mais poderoso da América". Em suma, um ano tão "brutal", que houve a necessidade de se escrever artigos a explicar porque não podia ser afastado do cargo de CEO.

Mas como bem nota o Washington Post e a Axios, nos últimos dias, Elon Musk conseguiu o impensável: ajudou a reavivar o "mojo" de Mark Zuckerberg em Silicon Valley. E eis o número redondo que ajuda a explicar essa crença: a Threads, a cópia do Twitter via Instagram que virou tópico de ordem nos últimos dias na Internet, ultrapassou os 100 milhões de utilizadores em menos de uma semana.

Para colocar as coisas em perspetiva. Em fevereiro, estávamos a dar conta que o ChatGPT tinha alcançado algo histórico: tinha sido a aplicação mais rápida de sempre a atingir a fasquia dos 100 milhões de utilizadores — marca atingida em apenas dois meses. Agora, a nova rede social da Meta repetiu o feito em apenas cinco dias. Ou seja, a Threads é a nova detentora do título de "aplicação com o crescimento mais rápido da história".

O sucesso da Threads, de resto, foi imediato: nas primeiras duas horas, atingiu os 2 milhões de utilizadores; depois, aumentou sucessivamente até atingir a marca redonda: houve notícia dos 5, 10, 30, 70, até finalmente chegar aos 100 milhões de utilizadores. Um lançamento que foi "muito além das nossas expectativas", explicaria Mark Zuckerberg, antes de o próprio confirmar esta segunda-feira de manhã que se tinha atingido a fasquia dos 100 milhões “em apenas cinco dias”.

Ressalva: os utilizadores não estão só a entrar na aplicação. Estão a utilizá-la. Tanto que nos primeiros dias já tinham sido feitas 95 milhões de publicações.

  • Curiosidade: uma dessas publicações é a de Jack Sweeney, o responsável pela conta que segue os movimentos do jato privado de Elon Musk, que perguntou diretamente a Zuckerberg se podia ficar pela plataforma.

O que nos leva à questão: como é que chegámos aqui? Desde que Elon Musk comprou o Twitter por 44 mil milhões de dólares e entrou com um pia pela sede do passarinho adentro, as coisas na plataforma mudaram bastante. As vozes críticas dessas ditas mudanças são aos milhares, os gritos por uma alternativa sã, descomplicada e sem publicidade a esquemas dúbios de criptomoedas, multiplicam-se. Existem várias no mercado, é certo. Mas estas ou são viradas para as notícias (Post) ou são demasiado descentralizadas-fechadas-difíceis de navegar (Mastodon, BlueSky, Spill) para o utilizador comum que só quer carregar na #hashtag que lhe interessa.

Para piorar a situação, Musk anunciou mais uma série de medidas que não ajudaram em nada a sua causa: além de fazer saber que ia cobrar pelo TweetDeck, a aplicação do Twitter para o computador, entraram em vigor "mudanças temporárias" que limitam/restringem aquilo que os utilizadores conseguem ver na aplicação.

Em resposta, aconteceram duas coisas: um novo êxodo de utilizadores, que migraram para outras plataformas concorrentes (o CEO da Cloudflare até publicou um tweet com um gráfico do "tanking" em curso) e Zuckerberg avançou com a Threads (não confundir com o filme homónimo de 1984 sobre desarmamento nuclear).

O que nos leva à questão seguinte: como é que esta funciona?

A clonagem

Na verdade, não há muito a dizer: a Threads nasceu para ser um clone do Twitter, da mesma maneira que a Meta criou os Reels para replicar o efeito TikTok e as Stories para ter a efemeridade do Snapchat. Tem um visual minimalista estilo Instagram, mas ao jeito de microblogging clássico do Twitter.

Para abrir uma conta na Threads,basta ter uma conta no Instagram (o resto é importado, uma vez que replica o perfil do Instagram). E, sim, dá para mudar de foto. E, não, não dá para ter outro perfil. O utilizador é o mesmo em ambas as plataformas. Ou seja, para ter acesso à Threads, é preciso Instagram.

  • Não dá para ter Threads sem Instagram, porque apesar de a primeira ser independente, está estruturalmente ligada à segunda.
  • A mesma coisa acontece se quisermos apagar a conta na Threads. Para o fazer de forma efetiva, é preciso apagar a conta do Instagram associada.

O limite na Threads para as mensagens escritas é de 500 caracteres (contra os 280 do Twitter) e dá para incorporar fotos e vídeos de até cinco minutos. Existe apenas um feed, constituído por publicações de pessoas que o utilizador segue e conteúdos recomendados.

  • O que (aindanão dá para fazer: trocar de contas, seguir hashtags, mandar mensagens privadas ("DM's"), fazer pesquisa.
  • O que não tem: uma versão para computador (e anúncios, nesta fase).
  • Quanto ao funcionamento, como seria de esperar, tem as mesmas regras que o Instagram. Logo, coisas "Maiores +18" estão proibidas.

O que nos remete para o elefante na sala: não está disponível nos Estados-Membros da União Europeia. 

  • E ainda não está disponível (embora já existam utilizadores portugueses pela plataforma que contornaram a situação através de uma VPN) porque a Meta sabe que ia ter problemas na União Europeia (UE) devido às restrições do Regulamento Mercados Digitais (DMA), que começou a ser aplicado a partir do início de maio. A UE quer resguardar os 27 Estados-Membros e não quer dados como a raça, orientação sexual, estado de gravidez e religião, bem como os dados biométricos, sejam partilhados. Portanto, a dona do Facebook e Instagram nem sequer tentou entrar no mercado (para já).
  • Por falar em dados: a The Wired fez uma espécie de "Threads vs Twitter vs Bluesky/Mastadon/Spill/Hive Social" a comparar o nível de dados e informação pessoal recolhidos. E diga-se que é muita coisa em ambos os lados. A Threads recolhe mais, mas o Twitter não fica muito atrás.

OK, mas: o Twitter liderado por Musk é visto como um destilatório de ódio, bots, falhas/erros, e as recentes alterações (os limites) só vieram ajudar a repelir tanto os utilizadores como os anunciantes. Portanto, não é exagero nenhum frisar que o Twitter de Musk é uma experiência menos agradável do que já foi. Mas a Threads, no seu estado atual, ainda não consegue competir ao nível de funcionalidades. Por ora, parece que a vontade em ter uma alternativa é tão grande que só o facto de existir parece estar a ser suficiente para angariar novos utilizadores. No entanto, passando esta fase de raiva direcionada à gestão do dono da Tesla, vai ser importante mantê-los — e para isso é preciso continuar a copiar o que há de melhor na vizinhança. (Em abono da verdade, o Chefe do Instagram está a par de tudo isto e já fez saber que pretende aprimorar a app.)

Ainda assim, lembra a Vox, a Threads, para passar a n.º1, precisa de ter atenção a uma coisa importante: o tipo de utilizador do Twitter é bem diferente daquele que anda pelo Instagram (ou espera coisas diferentes das plataformas, vá). No Instagram, o apelo visual é o mais importante. Há uma curadoria pensada para envelhecer bem na posteridade dos tempos digitais. No Twitter, isso não interessa; o importante é "mensagem", a escrita, os caracteres, tudo em prol de uma reação imediata, a pensar "no agora". São duas disciplinas completamente diferentes. Convém ter atenção a isso e não só às funcionalidades que faltam clonar.