João Perna será possivelmente uma das testemunhas chave do Processo Marquês. Testemunha chave-na-mão, talvez não seja descabido dizer, tendo em conta que Carlos Alexandre nem teve de apertar muito com o motorista do Samouco para que este delatasse à grande e expusesse o esquema dos envelopes. Recordemos que Perna, motorista de José Sócrates, serviu de intermediário de uma comovente relação epistolar entre Carlos Santos Silva e José Sócrates - uma correspondência intermitente quase tão importante historicamente como a de Sophia e Jorge de Sena, por constituírem um retrato tão aterrador da época em que foram enviadas.

Em breve, completar-se-ão sete anos desde a queda do governo de José Sócrates. Já se contam mais anos desde o dia em que Sócrates caiu do que aqueles em que governou, mas os efeitos dos 2293 dias em que esteve à frente do país vão perdurar. Quando arqueólogos alienígenas desenterrarem o acórdão do Processo Marquês (previsto para o ano de 2098, celebrando os cem anos do início do amor cego e louco entre o ex-primeiro ministro e Fernanda Câncio) ficarão verdadeiramente impressionados com a natureza humana, sobretudo com a sua credulidade. Uma espécie disposta a acreditar em aliens, mas com dificuldade em encaixar que um primeiro-ministro poderia efetivamente ser corrupto.

João Perna não era um mero motorista. Para além de ter de levar Sócrates a restaurantes caros em ruas onde é difícil estacionar, ouvir a música de que Sócrates gosta, ir fazer recados à multi-milionária-só-que-não mãe de Sócrates e aguardar em quatro piscas à frente de hotéis para que o chefe terminasse faustosos pequenos-almoços onde doutrinaria opinion-makers, João Perna também serviria de intermediário do dinheiro que pagava as despesas de Sócrates. Não só através de gordos envelopes, como também através da sua própria conta bancária. Por essa razão, está agora acusado de branqueamento de capitais. Pois, João. É desagradável branquear capitais que não são nossos - acaba por ser uma opção pouco inteligente, um crime nada recompensador. Mas João Perna nada fica a dever a toda uma intelligentsia que, ao longo de muitos anos, se rendeu, sempre solícita, ao charme de Sócrates sem fazer perguntas. João Perna terá ficado com dores na coluna por tantos anos dentro de um carro, mas não a terá dobrado tanto como vários que as assinavam, bem dobradinhas, em páginas de jornais.

No vídeo capturado por câmara oculta que a CMTV revelou ontem, João Perna, hoje na penúria, revela que às vezes ficava com dívidas em nome de Sócrates no quiosque, porque ele não lhe dava dinheiro para pagar os jornais. Tenho toda a compaixão com a situação de Perna. É possível que o patrão nem gostasse de pagar jornais, dá a sensação de que preferia gastar o seu dinheiro a comprar quem lá escrevia.

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