“Neste momento, a nossa vivência é olhar para o contexto epidemiológico e social numa perspetiva construtiva de convivência com esta nova realidade, com a certeza de que a infeção por SARS-CoV-2 não desapareceu e não vai desaparecer”, disse o diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) à agência Lusa na área das consultas do hospital, que no início da pandemia foi transformada numa urgência covid-19.

Durante dois anos, o hospital teve respostas de contingência e o que se pretende agora é “não estar a reagir”, mas ter uma resposta “estruturante e flexível” para responder às variações que vão continuar a ocorrer”, explicou Luís Pinheiro.

No dia 23 de abril, entrou em vigor uma norma da Direção-Geral da Saúde que determinou a desativação das unidades “livres de covid” e as áreas dedicadas a doentes respiratórios, uma medida recebida “com agrado” por Luís Pinheiro.

“Permite-nos ter autonomia para organizarmos as nossas estruturas e circuitos de forma que sejam sempre seguros, mas com maior rentabilização dos recursos e maior fluidez”, numa altura em que a realidade pandémica “nada tem a ver com o que foi no passado”, sobretudo em termos do conhecimento e experiência adquiridas pelos hospitais.

Uma das mudanças que está a acontecer prende-se com o internamento: “Temos cerca de 40 camas que estariam reservadas para doentes covid, mas grande parte desses doentes não tem a doença, são apenas positivos”, beneficiando se estiverem internados junto das equipas especializadas na sua doença base, “com os mesmos níveis de segurança, mas com muito mais efetividade clínica”.

Para Luís Pinheiro, não há aspetos positivos a tirar desta pandemia. “O que nós todos tentámos foi retirar do percurso durante a pandemia aquilo que pudesse ser relevante para melhor funcionamento do hospital, não perdendo o que se aprendeu”, com “ganhos para o futuro”.

Uma das aprendizagens está refletida nas urgências, onde os circuitos continuam separados para doentes respiratórios e não respiratórios, embora com uma flexibilidade diferente, porque tem vantagens clínicas e de segurança.

Também na área onde se realizam as consultas foi mantido o circuito de entrada e saída dos doentes, mas por ser “funcionalmente muito mais eficiente e muito mais prático para os doentes”.

Com a pandemia, o hospital conseguiu concretizar o desígnio de acabar com os doentes internados nas enfermarias em macas e que conseguiu manter “com o retomar da atividade assistencial, que já está em níveis próximos, e em muitos casos acima da fase pré-pandémica”, disse Luís Pinheiro.

Para o diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica, Ângelo Nobre, a pandemia foi “um elemento congregador de esforços dentro dos serviços”, que permitiu quase eliminar a lista de espera de cirurgia cardíaca no CHULN.

Em fevereiro de 2020, havia 460 doentes em lista de espera, a grande maioria fora do tempo médio de resposta, e neste momento são 140.

“Foi uma época de grande motivação dos profissionais de saúde do serviço e isso permitiu-nos aumentar o movimento operatório em relação a um ano normal em cerca de 18%, 20%”, realçou.

Para o especialista, a pandemia teve “muitos efeitos positivos” porque obrigou a criar protocolos que minimizam a transmissão de doenças no circuito hospitalar, a pensar mais no serviço, permitindo melhorar os cuidados hoje prestados aos doentes.

Em sentido contrário, apontou perentoriamente as restrições nas visitas.

“Nós tentamos obviar isso, mas [já não é possível] aquela enchente de 3, 4 pessoas por doente que tínhamos antes -que não era boa -, mas para os doentes era reconfortante”, declarou.

Enfermeira chefe no serviço de Cirurgia Cardiotorácica, Ana Almeida recordou o tempo em que esteve na linha da frente de combate à pandemia.

“Foram tempos emocionalmente muito desafiantes, também muitos esgotantes, mas o sentimento que guardamos é de muita, muita gratidão por ter encontrado e ter sido possível desenvolver funções com as equipas que desenvolvi e de ter criado laços tão fortes tanto entre profissionais como entre doentes”, sublinhou.

Ana Almeida disse que “é bom” o regresso “ao mais perto da normalidade possível”, mas confessou: “Não me sinto na minha normalidade porque a sombra ainda existe na nossa sociedade e em todos nós”.

As marcas da pandemia e as lições que mudaram o Hospital de Santa Maria

Uma sala e um quarto de pressão negativa são “um luxo” que a unidade de otorrinolaringologia do Hospital Santa Maria, em Lisboa, herdou da covid-19, a par de práticas que introduzidas com a pandemia e que são hoje mantidas.

Esta foi uma das unidades que, durante a pandemia, viu transformado o seu bloco operatório e o circuito de ambulatório numa Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) para acolher os doentes muito graves com covid-19, uma mudança que obrigou a equipa a operar noutras áreas do hospital e até num hospital privado.

“Esta pandemia foi para muitos, e para nós com certeza, o desafio das nossas vidas, porque de repente tivemos que começar a participar num filme para o qual não tínhamos guião. Não sabíamos o que ia acontecer, nem sabíamos qual era o papel que iríamos desempenhar”, contou à agência Lusa o diretor do Serviço de Otorrinolaringologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), Leonel Luís.

A disponibilidade dos profissionais foi total e a questão era onde saber seriam mais necessários: “É só na área dos ouvidos, nariz e garganta? Ou é necessário ir lá para fora ajudar nas ambulâncias e fazer a triagem?”, contou Leonel Luís, que junto com os seus colegas esteve na linha da frente a ensinar como se fazia um teste ao coronavírus.

O papel que desempenharam levou-os a disponibilizar os seus espaços. “Perdemos a consulta no piso 3, o bloco [operatório] no piso 4 e a enfermaria no piso 5, mas mantivemos a atividade possível, com o nível de segurança máximo para a nossa equipa e para os doentes”.

Dois anos após o início da pandemia regressaram à sua “casa”, agora renovada e com algumas “cicatrizes positivas” de uma guerra contra um vírus que matou mais de 22 mil pessoas em Portugal.

À Lusa, Leonel Luís mostrou com orgulho as obras realizadas nas casas de banho, que permitem aos doentes ter mais privacidade e conforto, o que considerou “uma mudança civilizacional”.

Um quarto de pressão negativa com uma casa de banho privativa, quartos ventilados e uma sala de pressão negativa que mais parece uma nave espacial são outras marcas deixadas pela pandemia.

Além das marcas físicas, ficaram rotinas no hospital: “Nada voltou a ser como antes. De certa forma, ganhámos qualidade, segurança (…) e em certas coisas ganhámos competências, mas melhorámos também as nossas boas práticas. E isso é bom em termos de ganhos em saúde”.

“Não nos passa pela cabeça, hoje em dia, observar um doente numa consulta de otorrino, que são consultas normalmente sem máscara, e não higienizar esse espaço antes da próxima consulta e era uma coisa que fazíamos regularmente antes da pandemia”, exemplificou, assinalando também o uso permanente da máscara, outrora só utilizadas em ambiente de bloco operatório.

A pouco e pouco a vida no hospital foi retomando a normalidade visível nos corredores cheios de gente e no número de consultas, exames e cirurgias realizadas.

“As pessoas ansiavam por ter um trabalho normal, ter as consultas nos seus gabinetes e verem o número de doentes que viam antes”, salientou Leonel Luís.

O impacto da pandemia também se fez sentir no Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia, que teve de ceder inicialmente os seus recursos e as suas 21 camas de internamento para doentes com covid-19.

“Foi brutal, mas foi o que se passou a nível nacional e internacional na área das doenças do aparelho digestivo, que incluem muitos cancros”, disse o diretor do serviço, Rui Tato Marinho, sublinhando que a atividade reduziu cerca de 80% no início da pandemia, em 2020.

“Só no pós-guerra, depois disto tudo passar, e está a passar felizmente, é que vamos saber o impacto que vai ter”, frisou.

Após o embate inicial, a atividade foi recuperando, mas não tem sido fácil voltar à normalidade, porque continua a haver doentes e profissionais infetados, além da necessidade de rastrear os doentes antes dos exames (cerca de 25.000 anualmente) e dificuldades na aquisição de algum material, mas isto a nível internacional, afirmou Rui Tato Marinho.

“Vamos viver com uma realidade um bocado diferente, mas o pós-guerra também é uma altura de novas oportunidades”, disse, revelando que está em construção no Hospital Santa Maria uma nova unidade destinada às doenças do aparelho digestivos com mais salas de exame, uma área de recobro e equipamentos modernos.

“Já nos deram mais duas dezenas de novos equipamentos que são caros, mas há uma guerra biológica que nós queremos vencer e vamos conseguir”, disse, convicto.

* Helena Neves (texto) e Tiago Petinga (fotos), da agência Lusa