Isabel do Carmo é uma mulher suave, sorridente e muito cordial, que expressa com clareza as duas ideias. É difícil imaginá-la hoje de armas na mão a defender ideias radicais, que aliás já não subscreve. Professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, escreveu mais livros sobre alimentação do que sobre política.

O livro é interessante para as gerações mais novas, que não fazem ideia do ambiente em que se vivia durante o Estado Novo. Os “anos de chumbo”, o nome diz tudo.

O meu filho pergunta-me: “Mas não sabias que havia o estalinismo?” E eu respondo-lhe que pensava que tudo aquilo que se dizia dos países do bloco soviético era propaganda aqui do fascismo, e portanto não acreditava.

"As ditaduras dependem da personalidade do ditador. O Mussolini era um homem teatral e vivia da exibição na rua, e Salazar era um homem completamente deprimido, não gostava das pessoas."

Sobre a etiqueta de “fascista”, pode dizer-se o seguinte: o fascismo verdadeiro é inventado pelo Mussolini, o que depois o Hitler copia. Mas o Salazar é mais um ruralista pré-Revolução Francesa, do que um fascista.

Inspira-se muito no Maurras, não é?

O fascismo era “moderno”, acreditava nas máquinas, apoiava-se na indústria - e o Salazar odiava tudo isso.

Há quem considere que ele era um católico nacionalista, inspirado pela ideologia do Maurras. O próprio Mussolini também se inspirou nesses teóricos franceses, a partir de certa altura. Aliás, eu li duas vezes o livro do Jaime Nogueira Pinto (“Salazar: o outro retrato”) e vi coisas que não tinha visto, que é realmente a raiz profunda do fascismo, que é rejeitar o amor entre as pessoas e acreditar num poder nacional fundado na tradição e nos heróis nacionais. Depois há a divisão entre o fascismo popular do Mussolini nos primeiros tempos - em se esforçou [por implantar um tipo de socialismo], mas que não foi para a frente, e o fascismo do Mussolini no poder. A fase popular dá-se na rua, com violência. Depois no poder continua a violência, institucionalizada, mas há uma legislação em relação ao trabalho.

São diferentes?

Sim. O Mussolini no poder, em termos de legislação, há aqui uma coincidência com o Salazarismo no poder.

“Três Ditaduras na Europa Ocidental”

Sinopse:

As ditaduras do século XX em Portugal, Espanha e Grécia. Um documento histórico

Este livro fala-nos dos que nasceram nos anos 30 e 40 do século passado e foram os jovens revolucionários dos subsequentes anos 60 e 70, que contribuíram para a queda das três ditaduras europeias que existiam à época na Europa Ocidental - Portugal, Espanha e Grécia.

Um relato tripartido em que Isabel do Carmo, Sofia Rodríguez e Kostis Kornetis documentam - usando tanto fontes escritas como testemunhos orais - a conjuntura internacional, as lutas que se travavam nos respetivos países, e as condições de vida das populações durante os anos de repressão.

Editora: Dom Quixote
Ano: 2024
ISBN: 9789722081115
Número de páginas: 656
Capa: Brochada

O Salazar copia do Mussolini, que foi o primeiro, é isso?

Copia mesmo.

Mas vejo uma outra diferença entre o Salazar e os fascismos de Mussolini e de Hitler. Os fascismos exigem a participação das massas, e o Salazar era ao contrário, as massas só tinham que trabalhar, ficar quietas, não se manifestar nem a favor nem contra.

As ditaduras dependem da personalidade do ditador. O Mussolini era um homem teatral e vivia da exibição na rua, e Salazar era um homem completamente deprimido, não gostava das pessoas. Gostava de si próprio e do que escrevia, achava que aquilo é que era, rodeado por por muito poucos. Percebe-se que os homens que o rodeiam são meia dúzia, sempre os mesmos, desde o CADC (Centro Académico de Democracia Cristã), em Coimbra. Esse grupo persiste até ao fim. Funciona, é ideologicamente coeso, adulador do Salazar, e dirigido para captar terrenos diferentes - os militares, os civis mais intelectuais -, e tem um grande desprezo pelo povo. Entre eles há desconfianças mútuas, o que é característico dum regime deste tipo. Desconfiam uns dos outros e desconfiam de toda a entourage. Quando sabemos agora as pessoas cujos telefones eram escutados, escutavam-se uns aos outros. Como no Calígula do Camus, é aquela gente que envolve o ditador e que compete entre si e vigia-se entre si. Eu penso que essa característica de desconfiar da entourage é muito própria destes regimes de ditadura.

Bem, o Salazar jogava com isso.

Completamente. Jogava uns contra os outros, e assim permaneceu até morrer na cama.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

O fascismo espanhol é muito mais violento, também porque começa com uma guerra civil. Os espanhóis, ao contrário de nós, que somos mais acomodados.

É esquisito, porque passa-se a fronteira e muda tudo. Passa-se da calma do Algarve, chega-se a Cádis… Tenho ido a Cádis porque lá há uma organização de médicos muito importante, e aquilo é carnaval todos os dias!

O facto é que eles tiveram um milhão de mortos na Guerra Civil. Nada que se compare com as mortes provocadas pelo Estado Novo. Aliás, a preocupação do Salazar com a legalidade foi ao ponto de fazer leis para justificar a repressão. Portanto, reprimir, mas dentro da lei!

E usava frases subtis que podem ser interpretadas como permitindo a repressão, mas sem pena de morte - embora tenha havido mortes no processo.

Em Espanha, claro que houve uma guerra, mas mesmo em zonas não atingidas pela guerra, como na Galiza há sempre uma resistência carlista, que equivale à nossa miguelista, em zonas beatas e reacionárias, que fica permanente - aprendi isto com historiadoras portuguesas, a Miriam Malpern e a Fátima Sá.

Curiosamente, eu estive na Galiza numa excursão que foi organizada pelo Museu do Aljube, pela Rita Rato e a Paula Godinho, que conseguiram que se prestasse homenagem aos portugueses da raia que recolheram os guerrilheiros republicanos e os esconderam. Foi preciso o Exército português ir lá para vencer essa resistência de solidariedade. Chegou a haver tiros sobre as casas que abrigaram os guerrilheiros, ainda na década de 1950, ali próximo de Chaves.

Fomos lá numa altura em que a crise do Covid estava um bocadinho aliviada, em dezembro de 21. Levamos o Coro da Achada, que cantou dos dois lados da fronteira. E vimos um fenómeno que eu desconhecia totalmente, que aliás está neste livro: uma placa que os vizinhos da Galiza fizeram em homenagem aos ferroviários portugueses que foram assassinados e enterrados ali, porque tinham apoiado os anti-franquistas na Galiza. Há uma situação que é quase de tragédia grega. Depois de os terem enterrado, a população foi lá desenterrá-los e levou-os para o cemitério. Atualmente estão à procura dos ossos para identificar o DNA das pessoas. É uma história completamente desconhecida, mas que me impressionou muitíssimo.

Fomos acolhidos por galegos, julgo que organizados de uma forma inorgânica - alguns eram ferroviários, mas não identifiquei ali partidos - e foram muito simpáticos, alegres como são os espanhóis. Também cantaram, e fiquei a saber coisas que não sabia.

Os espanhóis gostam muito de grandes manifestações públicas. Continuam a ter grandes procissões e aquelas festas religiosas em que vem tudo para a rua. Mas então, o fascismo, como método, é uma coisa que se encontra também nos regimes comunistas. Não sei se concorda.

Eu acho que não é comparável porque tem características diferentes, mas só por isso.

A minha opinião é que a ditadura do proletariado não existe, porque o acontece imediatamente é que se forma uma elite, a chamada nomenklatura, e torna-se uma ditadura dessa nomenklatura. O proletariado não pode abrir a boca.

E foi assim.

O comunismo é uma boa ideia que, na prática, não se consegue realizar. Ou seja, tem que haver sempre uma minoria dominante que manda na maioria, e isso em qualquer regime. Por exemplo, em Portugal, o que aconteceu com a Revolução, a minoria que mandava caiu, e formou-se outra minoria que manda atualmente. Isto é fatal. Os regimes comunistas acabam por fazer a mesma coisa. Hoje em dia que regimes comunistas é que há? A Coreia do Norte, que é uma monarquia comunista, uma fórmula absolutamente surreal, e depois há em Cuba, na Venezuela, talvez…

Não tenho elementos suficientes.

"Os socialistas utópicos eram mesmo idealistas, porque não contavam com a natureza do ser humano, e depois aquilo deu num horror."

Pois, eu também não. Seria, digamos. E na China. Mas a China é uma ditadura do Partido, pessoalizada em Xi Jinping neste período. A Rússia, sempre foi uma ditadura.

Tenho pensado muito nisso, sobretudo a partir dos anos 70 do século XX. Porque até aí tínhamos muita dificuldade em obter informação. No livro “As origens do totalitarismo”, a Hannah Arendt entra com uma designação que eu aceito completamente: há a Revolução de 1917, leninista, e depois há revolução de 1926, estalinista. Durante os anos leninistas houve realmente uma tentativa do poder emanar dos sovietes. Quando vejo agora a situação na Crimeia, lembro-me sempre que as grandes batalhas internas ocorreram ali, porque era onde estavam os marinheiros do Báltico, numa tentativa de haver uma verdadeira liderança dos sovietes. Isso misturou-se com a guerra civil contra o exército branco, com a situação na Europa, com os camponeses, que nunca dever iam ter sido sovietizados daquela maneira…

Há portanto ali uns curtos anos que vale a pena analisar (e a Rosa Luxemburgo fê-lo até ser morta ela própria). Isso é uma época.

E foi, artisticamente, um período muito criativo. Grandes cineastas, avanços na arte e na música, o construtivismo. Eles experimentaram muito.

Muito. Na Ucrânia, que era russa, há vanguardas notáveis, na pintura, na poesia e na filosofia. Espantoso, era outro mundo. O Maiakovski suicidou-se; será que ele viu mais longe? Nunca saberemos, mas lá que ele fez as “janelas vermelhas”.

Foi um tempo de exaltação, em que todas essas coisas aparecem. Era um pensamento novo. Depois, tivemos um recuo, a nível mundial. Houve ali uma chama, que ocorreu em toda aquela zona, e o recuo foi um golpe terrível para o ideal comunista. Com o Estaline o que há é uma ditadura cruel, que não chamo de fascista, mas não é para melhorar, é talvez para piorar. É outro tipo de ditadura, mas tem a tal desconfiança de todos. É extraordinário como o  Khrushchev conseguiu sobreviver! Hoje tenho uma admiração por ele, que ficou de boca calada até ao dia da morte de Estaline…

Ninguém (no Comité Central) o considerava, não é? Depois, quando o Estaline morreu, ele pediu apoio ao Zhukov, chefe das forças armadas e herói nacional, o que foi fundamental para prender e executar o Beria, que era o concorrente ao cargo mais temível, porque chefiava a polícia política.

E depois ele denunciou o estalinismo, descreveu o horror dos campos de concentração na Sibéria, a impossibilidade de qualquer movimento intelectual novo. Quando se lê aqueles escritores, como o Pasternak, se não soubéssemos do resto… A coletivização, pensada por fora, como pensavam os socialistas utópicos, até parecia uma coisa boa. Mas quando se começa a saber que aquilo tinha um sistema de vigilância interna…

Os socialistas utópicos eram mesmo idealistas, porque não contavam com a natureza do ser humano, e depois aquilo deu num horror.

Pois, o Rousseau estava errado, não é? O homem não é bom por natureza.

Pois, o Rousseau é o princípio disto tudo! A discussão dele com o Voltaire sobre o terramoto de Lisboa, está lá tudo. O homem realmente não é bom.

Amacia essa maldade para poder viver em sociedade, porque precisa.

E depois, os homens não são todos iguais.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Gostaria de avançar; interessa-me mais o presente e o futuro. Como sabemos, a Europa hoje em dia está novamente a caminhar para a extrema-direita. Mas é diferente da extrema-direita dos fascismos.

Mas tem pontos comuns. Há um pensamento nesta nova direita, um bocado tosco, mas que vai buscar a história da tradição, os nossos heróis, o domínio do homem sobre a mulher, da mulher a reduzida à sua função (de procriar). Há algumas coisas que, ainda de uma forma tosca, seguem a linha da Europa ser branca.

Há muitas parecenças, mas a forma de atuar é diferente.

Isso é porque temos os novos meios de comunicação.

Por acaso o [líder da extrema-direita neerlandês] Geert Wilders hoje disse que não formava governo.

Não tinha condições.

Exatamente. Ganhou as eleições, mas não conseguiu uma maioria que o apoiasse no parlamento. Mas as possibilidades são cada vez maiores. A Alternativa para a Alemanha (AfD) continua a subir, o Ventura subiu de 12 para 50 deputados.

E na Alemanha é interessante observar que simultaneamente há um movimento anti-fascista muito importante.

A AfD tem mais força na antiga Alemanha de Leste, porque foi a parte do país que foi menos beneficiada.

A interpretação é mais essa do que a ideia de que a Alemanha como um todo está a virar à direita.

"Eu acho que uma das questões que tem minado a sociedade portuguesa é a questão da administração pública, porque aí refletem-se esses poderzinhos e não funciona, ou funciona muito mal."

O facto é que estes movimentos atuais apoiam-se na insatisfação das pessoas, que sentem que não fazem parte das decisões.

E em Portugal também. Em todo o lado é assim. E o Trump também, com um forte apoio dos adolescentes.

O que vai acontecer se o Trump ganhar?

Nós podemos ter surpresas. Estamos num momento em que a esquerda toda, ou seja, as pessoas que são pró-igualdade têm que se unir, não no sentido orgânico, mas no sentido táctico e estratégico. Acho que há aqui uma linha divisória, que não é só a linha vermelha contra os proto-fascistas, é também uma linha da concepção dos que são pró-igualdade com aqueles que acham que a concorrência e o mercado conduzem tudo.

Eu penso mesmo que deve haver uma discussão no sentido de percebermos melhor o que uns e outros querem. Sou capaz de discutir com uma pessoa da AD, por exemplo, e perguntar-lhe porque é que acha que a competição e o mercado é que devem dirigir a sociedade. Digo isto no sentido benigno, para perceber melhor.

É a natureza humana, porque essa competição tem de ser regulamentada pelo estado, mas tem que existir. Porque se não houver concorrência, se uma pessoa não tiver possibilidade de ganhar com isso, a pessoa não se esforça. Pode nunca ficar rica, mas ideia de que essa possibilidade existe é que leva as pessoas a inventar, a procurar novas formas de produzir.

Não sei se é toda a gente.

Não, não toda a gente, mas alguns. O suficiente para fazer a sociedade avançar. Porque é que as sociedades do modelo ocidental, chamemos-lhe assim, estão muito mais desenvolvidas do que as outras ? Nos bons e maus aspetos, é preciso que se diga. Tirando a China, que é um caso especial. Porque sem o estímulo do lucro, as pessoas não se mexem.

As pessoas também se mexem pelo prestígio. Muito, pelo poder.

Sim, são vários estímulos. Pelo poder, são os políticos que vão lá.

Há o poder e os poderzinhos. Em todos os coletivos há esses poderzinhos, e aí não é questão do lucro, é a questão de mandar. Eu faço consultas quatro vezes por semana e oiço os pacientes. E vejo muitas vezes que os conflitos no trabalho, que fazem adoecer a cabeça das pessoas, são mais baseados nos poderzinhos e nas áreas de poder do que no lucro ou na subida dos salários. Os de topo, nas grandes empresas, estão lá no Conselho de Administração, não são executivos, são acionistas, e querem ganhar. E o dono da empresa também. Mas depois há um escalão em que são os poderzinhos, e têm de ser regulamentados. Mas é muito difícil regulamentar.

Eu acho que uma das questões que tem minado a sociedade portuguesa é a questão da administração pública, porque aí refletem-se esses poderzinhos e não funciona, ou funciona muito mal. As pessoas que vão a uma repartição para resolver um assunto e leva meses a resolver.

Esse problema com a administração pública existe desde que a administração pública existe. Ou seja, desde 1820, digamos. De várias maneiras, porque antes havia outro tipo de administração, menos codificada.

De várias maneiras porque quando se criou o estado liberal o país era analfabeto, pior ainda.

O aparelho de Estado sempre andou entre a incompetência e o desleixo. Não sei porque razões, mas é um facto. Evidentemente que o salazarismo reforçou muito a situação, com a ideia de que o Estado estava sempre certo, por natureza.

E as cunhas.

Hoje podemos dizer a um funcionário público: trate-me bem porque eu é que lhe pago o seu salário. No tempo do Salazar não existia esse conceito sequer. O Estado era a autoridade, “manda quem pode, obedece quem deve.”

O sistema funcionava sobretudo com cunhas. Eram os envelopezinhos. O aparelho de Estado manteve-se depois do 25 Abril. Há coisas que têm mudado. Ontem fui ao Hospital Gama Pinto e fui muito bem acompanhada.

Estava a ler no seu livro como era a realidade do antigamente, que aliás conheci bem, e não há dúvidas que mudou muita coisa, completamente.

Sobretudo ao nível da prestação de saúde e da educação.

O ambiente, em geral. As diferenças de classe continuam a existir, mas nós não temos tanto essa perceção e não sentimos isso como uma camisa de forças.

Perdeu-se o respeitinho!

Agora, existe muito a ideia, entre quem viveu no “antigamente”, que as novas gerações não sabem as regalias que têm; mas a Anabela Mota Ribeiro fez uma série de programas de televisão, depois publicada em livro, “Os filhos da madrugada”, onde se prova que isso não é verdade. Eles sabem.

Ela também fez uma escolha (dos entrevistados), não é?

Sim, mas eu conheço muitos jovens que sabem.

Apesar de não saberem quem é o autor dos “Lusíadas”, sabem muita coisa. Têm acesso a meios de comunicação fantásticos.

Talvez aquele conhecimento que nós valorizávamos já não seja importante.

São pessoas que conhecem, mas muitas vezes não percebem. Há falta de pensamento crítico e muito mimetismo, embora isso também sempre tenha havido.

Quando eu era adolescente os mais velhos achavam sempre que os jovens eram uns idiotas, não percebiam nada, iam pelo caminho errado, e portanto eu tento não tomar essa atitude.

Eu não tenho essa atitude. Nos meus círculos os jovens sabem muito mais do que eu sabia.

"Cheguei a Inglaterra, eu e um espanhol, e fomos tratados como reles fascistas."

A Internet faz uma grande diferença. Apesar de ser uma daquelas boas ideias que o Homem tem e depois consegue estragar. A informação distribuída por nódulos (“hubs”) que não podem ser controlados por um poder central é uma ótima ideia, mas depois vê-se no que deu. O Tik Tok, por exemplo, é tão superficial. O que me incomoda não são os disparates, mas a superficialidade. A única preocupação é chocar, ter graça, arranjar muitos seguidores, sem nenhuma intenção maior.

Eu, aí, não tenho o pensamento fechado. No outro dia vi um brasileiro a fazer uma exposição guiada num museu. Disse muita coisa estereotipada, muitos clichés, mas a verdade é que no meio daquilo tudo ele disse algumas coisas que eu não sabia sobre o naturalismo brasileiro.

A informação pode ser superficial, mas alguma coisa fica. Um amigo meu, alemão, que foi fundador dos verdes quando ainda eram um partido de esquerda, mostrou-me uma publicação brasileira a explicar muito bem o que é o capital. Também vi um judeu anti-sionista a explicar historicamente, com muita calma, como aconteceu o Estado de Israel, as contradições. Para pessoas que não leem, ouvir aquilo é uma maneira de aprender.

Há muitos judeus que são contra as ações de Israel. É preciso ver que Israel tem, neste momento, um governo de extrema-direita. Eu lembro-me de quando viajava, no tempo do Salazar, fartavam-se de me criticar, como se eu tivesse alguma culpa!

Exatamente. Também aconteceu comigo. Cheguei a Inglaterra, eu e um espanhol, e fomos tratados como reles fascistas.

É natural. Até hoje se discute até que ponto o povo alemão foi nazi ou não.

Havia de tudo.

Provavelmente os que não eram nazis calavam-se.

O meu genro é alemão e a família dele tinha um lado nazi e outro anti-nazi. O bisavô dele foi preso. Nos mexericos da aldeia era considerado como um protetor dos judeus. Mas eram coisas relativamente locais. Depois ia lá a mulher dele oferecer uma galinha ao guarda para o libertar. Isto são histórias locais, que eu tenho muita curiosidade em saber, através da família do meu genro, porque significa que as coisas são muito heterogéneas.

É o que está a acontecer em Israel. Os três protagonistas da solução dos dois estados, Arafat, Isaac Rabin e o egípcio El-Sadat, foram assassinados.

Há muita gente em Israel contra a guerra, inclusive os radicais hassidim.

Os hassidim são dissidentes ao contrário. Eles crêem que ainda não veio o profeta, e portanto não pode haver Estado de Israel.

São solidários com os palestinianos.

São? Isso eu não sabia. Depois, o que acontece, no caso dos americanos, como os judeus têm uma influência enorme no quadro político do país, os políticos americanos não podem ir contra Israel. Tenho falado com alguns, não são de todo pró-Netanyahu, acham que ele está a fazer um péssimo trabalho, mas mesmo assim continuam a apoiar Israel.

Mas tem havido manifestações de judeus americanos contra o que se está a passar em Gaza.

As manifestações não resolvem nada. Todos os dias morrem centenas, milhares de palestinianos.

É verdade. As manifestações é uma espécie de impotência de não fazer as coisas, e as pessoas.

E o problema chegou às grandes universidades americanas. Há grandes disputas dentro do corpo académico, entre os patrocinadores e entre os estudantes.

As manifestações muitas vezes são ritualizações das nossas posições e, de facto, como diz, não resolvem nada. É apenas uma afirmação.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

O que acha que vai acontecer com a Europa? Em relação ao Putin, acha que ele vai continuar a atacar a Ucrânia? Não vai desistir…

Não, não vai desistir. Eu acho que o que se passou foi horrível. O Putin e o seu patrocinador, o Yeltsin, mataram a União Soviética, definitivamente, porque havia ali uma saída, com o Gorbachev, que seria o ideal para a Europa. Mas aqueles, são dois bandidos. E depois o Putin invadiu outro país, o que não de pode fazer, ponto final. Agora é uma guerra sem fim que dá muito rendimento aos fabricantes de armas.

As armas são como as drogas; o comprador pede por amor de deus que lhe vendam mais.

Li uma coisa de um autor que eu gosto muito e é desconhecido, o Gunter Anders, primeiro marido da Hannah Arendt, em que ele diz que os fabricantes de armas é que provocam as guerras porque, através da espionagem e da diplomacia podem-se provocar guerras.

Não sei se sou tão a favor dessa interpretação. Não há dúvida que os fabricantes não são boa gente, mas há muitas razões para provocar guerras além do interesse dos fabricantes. Essa é uma, sem dúvida. Mas há outras. A do Putin é querer restaurar o Império Russo.

Como é que os caucasianos se consideram uma grande raça, se nunca existiu? É porque os russos invadiram o Cáucaso, a Georgia, e depois, entre os crânios dos mortos, o mais bonito era de uma rapariga escrava da Geórgia. A Rússia foi sempre invasora, em todas as épocas.

Li outro dia que a época da expansão marítima corresponde à época da expansão terrestre da Rússia, para Leste. A expansão levou a Rússia até Vladivostok. Chegaram ao Alaska - e depois venderam o Alaska aos americanos, por sete milhões de dólares!

No século XIX?

Sim. Foi o czar. Nessa altura não eram inimigos. Nem os americanos sabiam a importância estratégica do que estavam a comprar, nem os russos do que estavam a vender. Os russos tinham uma perninha no continente americano, está a ver? Sete milhões, em 1867, era uma boa quantia. Mas, então, voltando à grande questão, o que vai acontecer à Europa? Se o Trump ganhar…

Vai apoiar a Rússia.

E a Europa não tem nada; nem armamento, nem soldados treinados. Os europeus não sabem dar um tiro. Têm tropas profissionais muito pequenas em todos os países. Portugal tem cerca de 30.000, incluindo pessoal não operacional. Eu, que odiei tanto o serviço militar, hoje em dia sou a favor. Por um lado, faz bem aos jovens um pouco de disciplina (risos) e por outro lado precisamos de fazer como a Suíça, que tem um serviço militar que dá uma prontidão a todos os cidadãos. Até levam a arma para casa!

Custa-me a perceber que a Rússia queira chegar até ao Atlântico.

O Putin disse que o Império Euro-Asiático vai de Vladivostok a Lisboa. Está gravado, deve ter sido a única vez que ele disse “Lisboa” na vida! Evidentemente que isso, se acontecer, não vai ser no nosso tempo.

Para já, o que ele quer é reconstituir a União Soviética. É o primeiro passo. O acordado naquela maldita Conferência de Yalta.

Maldita Conferência de Yalta e maldito acordo entre o Churchill e o Estaline, o chamado “tratado infame”. O Churchill quis dividir a Europa para bem reinar do lado de cá.

Aliás dizem - nunca vi confirmação, mas diz-se - que ele é que decidiu que o Salazar continuava, depois da Guerra. Achou que era melhor ter um ditador do que um regime permeável pelos comunistas.

Esse documento existe, em Viena. É mesmo conhecido como o Acordo Infame. A Grécia ficou para os ingleses.

"É bom que as pessoas defendam aquilo em que de facto acreditam. Não é coisas fantasiosas."

Por isso é que os comunistas gregos foram massacrados. Do outro lado (da Cortina de Ferro) foram os nacionalistas.

Claro, eles não tinham o direito de decidir o que é que esses países iam ser.

Mas então, e o futuro? Se o Trump ganhar é um cenário diferente do que se ele perder.

Sim, o Trump não vai apoiar a Europa. Quer uma aliança tática com o Putin. Claro que o Reino Unido não vai aceitar isso.

Mas o Reino Unido é uma potência muito fraquinha, graças ao Brexit.

Foram os reacionários que votaram a favor. E continuam a ter um partido reacionário no poder.

Mas o Partido Trabalhista inglês é muito fraco. O Keir Starmer é muito fraco. Os trabalhistas vão ganhar mais pela incompetência dos conservadores do que por terem propostas interessantes. Os serviços públicos estão uma lástima.

Eu conheço bem. Eles estão assim porque cederam na terceirização. Começaram a comprar serviços a privados que lhes rebentaram com a estrutura e as finanças. Foi o pior que aconteceu ao SNS.

Não quer terminar com alguma coisa de positivo? (Risos)

O que eu acho é que não nos podemos entregar à desgraça. Ser fatalistas. Em Portugal, o 25 de Abril, feito no meio da Europa, por militares, não era imaginável. Agora, a posteriori podem interpretar como quiserem, mas foi um caso único. Havia muita gente com esperanças no Marcello e, de repente, surge uma coisa daquela amplitude, que atraiu uma grande parte da população, foi uma surpresa. Portanto, é melhor não nos entregarmos ao fatalismo, porque pode haver boas surpresas. Nesse sentido, é bom que as pessoas defendam aquilo em que de facto acreditam. Não é coisas fantasiosas. Não é, quem não gosta dos bancos, agora vamos atacar os bancos. (Embora o Chega já tenha dito que atacava os bancos, saiu-lhe aquilo.) Não é um confronto direto com os mais poderosos ao nível financeiro. Mas é mantermos as coisas em que acreditamos, algumas são exequíveis. Manter a esperança.