“A CIL gostaria de poder falar com a senhora ministra da Justiça. Já fizemos três pedidos de audiência e nem sequer é acusada a receção do pedido”, afirmou à Lusa o dirigente da CIL José Ruah, lamentando a mudança da postura do Governo nos últimos meses, que coincidiram com suspeitas de ilegalidades na obtenção da cidadania por descendentes de judeus sefarditas, com a naturalização do milionário russo Roman Abramovich a ser o caso mais controverso.

“No passado sempre conseguimos falar com quem precisávamos de falar e não só; vinham-nos perguntar e pedir a opinião. E agora temos um silêncio ensurdecedor”, sublinhou, sem fechar a porta ao diálogo e a um convite da entidade parceira na certificação à reflexão pelo Governo: “Se calhar estimaram qualquer coisa e não mediram bem. (…) Enganos todos podemos ter e depois podemos corrigir os nossos enganos. Não fica mal corrigir os enganos”.

Perante as duas normas que considera inconstitucionais no regulamento promulgado em março pelo Presidente da República, em alusão à exigência aos requerentes de documentos comprovativos de transmissão de propriedade por herança e de viagens regulares a Portugal ao longo da vida, José Ruah reiterou a sua convicção de que a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, “poderá ter capacidade para expurgar o regulamento destas normas”.

Apesar da intenção de mudar o recente decreto-lei que regulamentou a Lei da Nacionalidade, cujos efeitos para a naturalização de descendentes de judeus sefarditas se produzem a partir de 01 de setembro, o dirigente da CIL admitiu que “este regulamento, com exceção destas duas normas, é bom”, face à introdução de diversas garantias para um maior controlo.

José Ruah alarga também as críticas ao Instituto de Registos e Notariado (IRN), a entidade na dependência do Ministério da Justiça a quem cabe conferir a naturalização, por não responder aos pedidos de clarificação sobre o momento que define o início do processo de naturalização e não descarta a possibilidade de tomar outro tipo de medidas, tendo em conta a “grande confusão” gerada entre os requerentes de certificação para obtenção da nacionalidade.

“Estas entidades terceiras foram chamadas pelo Estado quando regulamentou a lei e isto, no nosso entender, determina que o processo de obtenção da nacionalidade por via da descendência de judeus sefarditas tem o seu início não no momento da entrada do processo na conservatória, mas no momento em que o requerente solicita a emissão de um documento ‘sine qua non’ para fazer entrar o processo na conservatória”, explicou.

E concretizou: “Questionámos o IRN sobre o dito prazo de 31 de agosto. Não conseguimos obter respostas de ninguém e, como não conseguimos, eventualmente seremos nós a liderarmos estas respostas. Não posso excluir que venhamos a decidir que o prazo [limite] de 31 de agosto é de entrada nas comunidades e não na conservatória. (…) Em sentido estrito, nada nos impede de continuar a analisar pedidos e emitir certificados após o dia 01 de setembro”.

Entre 01 de março de 2015 e 31 de dezembro de 2021 foram aprovados 56.685 processos de naturalização para descendentes de judeus sefarditas (que foram expulsos de Portugal por decreto régio há mais de 500 anos) num total de 137.087 pedidos que deram entrada nos serviços do IRN.

De acordo com dados enviados em fevereiro à Lusa pelo Ministério da Justiça, apenas 300 processos foram reprovados durante este período, restando, assim, segundo os dados registados no final do último ano, 80.102 pedidos pendentes.

Comunidade Israelita de Lisboa aponta inconstitucionalidades a regulamento da nacionalidade

De acordo com os pareceres, elaborados pelos constitucionalistas Armindo Saraiva Matias, da Universidade Autónoma de Lisboa, e Ricardo Branco, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, estão em causa as normas que requerem a transmissão de propriedade por herança “mortis causa” e a existência de viagens regulares a Portugal ao longo da vida como condição para preencher os requisitos de naturalização.

“A aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa integram a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República. Não pode, a pretexto da regulamentação da lei, proceder-se à sua alteração por simples decreto-lei, assim se subvertendo e violando a reserva. A lei da nacionalidade pode ser regulamentada por decreto-lei, mas este deve cingir-se, tal como faria um regulamento, à concretização dos seus aspetos técnicos”, refere o primeiro parecer.

Por sua vez, o segundo parecer salienta que a alínea d) do número 3 do artigo 24.º-A, onde constam as duas normas, “limita substantivamente a possibilidade de naturalização” dos requerentes, “o que manifestamente não pode fazer, sob pena de inconstitucionalidade orgânica, porquanto a disciplina da nacionalidade e das regras substantivas da sua atribuição compete, em exclusivo e integralmente, à Assembleia da República”.

Saraiva Matias diz ainda que o decreto-lei 26/2022 viola o princípio constitucional de proporcionalidade, ao impor a exigência de comprovativo “da titularidade, transmitida ‘mortis causa’, de direitos reais sobre imóveis sitos em Portugal, de outros direitos pessoais de gozo ou de participações sociais em sociedades comerciais ou cooperativas sediadas em Portugal” e “de deslocações regulares ao longo da vida do requerente a Portugal”.

“No plano da regulamentação não pode admitir-se a imposição de exigências que, por excessivas, sejam impossíveis de cumprir, tornando o regime inexequível. Isso colocaria aliás o legislador na cínica posição de prever um regime que, na aparência, corrige uma injustiça histórica, mas que, na prática, por impossibilidade da sua aplicação, deixa tudo na mesma”, alega o constitucionalista, rotulando esta situação “uma exigência excessiva e desrazoável”.

Ricardo Branco partilha da mesma visão e critica o que diz ser um tratamento diferenciado dos cidadãos estrangeiros apenas por descenderem de judeus sefarditas, ao invocar que não é exigida a prova de viagens anteriores a Portugal nos restantes casos.

“Os princípios da universalidade e da igualdade no direito de aceder à cidadania portuguesa (…) obrigam a que o legislador ordinário, pressuposta a existência dos demais requisitos, não trate diferentemente os cidadãos estrangeiros requerentes da nacionalidade portuguesa por naturalização”, argumenta, sem deixar de realçar uma “discriminação em função da ascendência e das origens religiosas”.

Os pareceres foram solicitados pela CIL na sequência da publicação do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa no dia 18 de março, em Diário da República, que regulamentou a Lei da Nacionalidade de 2020 e se traduziu em maiores restrições ao acesso à naturalização por parte de pessoas descendentes de judeus sefarditas (que foram expulsos de Portugal por decreto régio há mais de 500 anos).

O processo ficou envolto em polémica após ser revelada no final de 2021 a obtenção da cidadania portuguesa pelo milionário russo Roman Abramovich.

O decreto-lei entrou em vigor no dia 15 de abril, mas o artigo referente à naturalização de descendentes de judeus sefarditas só vai entrar em vigor “no primeiro dia do sexto mês seguinte ao da sua publicação”, ou seja, 01 de setembro de 2022.

Entre 2015 e 2021, segundo dados do Instituto dos Registos e Notariado e do Ministério da Justiça enviados à Lusa, Portugal atribuiu a cidadania portuguesa a 56.685 descendentes de judeus sefarditas.